“Vae victis”, ou a curtíssima existência da festa do 13 de maio em São João Nepomuceno e no Brasil

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(Texto de Luís Pontes, publicado na Voz de São João, em 22/04/2017)

Recentemente, nesta coluna, comentamos sobre a participação dos indivíduos não-brancos (ou seja, dos negros e pardos) na população são-joanense ao longo do século 19, o primeiro de existência de nossa cidade. E então demonstramos que, tanto no censo de 1840 quanto no de 1872, eles constituíam a maioria demográfica de SJN, com 71% e 60% do total populacional, respectivamente.

Por outro lado, vimos também que nem todos os negros eram escravos, e nem todos os pardos eram livres. E assim, observando a população local do ponto de vista da condição servil, os dados mostram que, em 1840, o contingente de cativos em SJN, entre negros e pardos, correspondia a 1151 indivíduos, ou 51% (portanto, pouco mais da metade) do total populacional da localidade. Já em 1872, esse número aumentou em valores brutos, saltando para 3231 escravos, porém diminuiu em termos percentuais, pois passou a corresponder a 34% (ou praticamente um terço) da crescente população são-joanense.

Embora não tenhamos encontrado dados referentes a 1888, ano da abolição da escravatura, uma simples estimativa estatística da tendência de queda dos percentuais, feita com base nos valores já vistos, leva-nos à conclusão de que, por ocasião da assinatura da Lei Áurea, possivelmente a proporção de cativos em nossa cidade girava em torno de 30% ou, no mínimo, em cerca de um quarto de nossa população total naquele ano. Ora, isso então correspondia a algo entre 2000 e 3000 indivíduos, que, literalmente da noite para o dia, ficaram livres em nossa cidade, junto com quase um milhão de outros em todo o país. Tratou-se, sem dúvida, de um feito gigantesco, conseguido com “apenas” a assinatura de uma lei, algo inédito na história, não só do Brasil, como de toda a humanidade.

A notícia da abolição, que certamente já era aguardada por todos, deve ter chegado muito rapidamente a São João, visto que, naquela ocasião, aqui já existia o telégrafo e também a ferrovia, com trens diários circulando entre nosso município e a então capital do Império, o Rio de Janeiro. É de se imaginar o tamanho do júbilo popular que explodiu em nossa pequena cidade, possivelmente com a ocorrência de retumbantes festejos no largo do Rosário, a atual praça Cel. José Brás. Era lá que se situava a igreja do mesmo nome, frequentada principalmente pelos negros e pardos, que então eram, como se disse, majoritários em SJN. E, certamente, essas mesmas celebrações se repetiram no ano seguinte, em 13 de maio de 1889, por ocasião do primeiro aniversário da abolição.

Por outro lado, quem, obviamente, não ficou nada contente com tudo isso foram os antigos donos de escravos, que viram uma considerável parte de sua “riqueza”, na forma da mão-de-obra cativa, se esboroar instantaneamente com a assinatura da Lei Áurea… Entretanto, a classe política são-joanense – até onde sabemos, 100% escravocrata – nada pôde fazer contra isso, visto que a abolição era já um fato consumado. Porém, mesmo não podendo se contrapor à realidade, nossos políticos começaram, então, a se mobilizar, no sentido de manifestarem o seu descontentamento com o governo imperial. Por exemplo, no dia 23 de julho de 1888 (portanto, decorridos apenas cerca de dois meses desde a Lei Áurea), o médico e deputado Joaquim Antônio Dutra foi um dos líderes de um movimento que criou, pela primeira vez em nossa cidade, uma agremiação política republicana, o “Clube 21 de Abril”, em homenagem a Tiradentes, visto que, agora, tanto ele, Joaquim Dutra, quanto vários outros políticos são-joanenses, tornaram-se fervorosos fãs do Mártir da Inconfidência…

Por sua vez, outro médico, vereador e líder escravocrata em nossa cidade, o Dr. Henrique Vaz, também se mostrou indignado com a libertação “dos 13 de maio”, que era como os escravagistas depreciativamente chamavam os emancipados pela Lei Áurea. Tanto que, em junho de 1889, ele foi o autor de mais um pacote de picuinhas anti-imperiais: apresentou um projeto de lei, aprovado pela Câmara são-joanense, que nomeava a praça em frente à Igreja Matriz, a principal da cidade, como “21 de Abril”, além de também batizar o largo da estação ferroviária como “Praça Saldanha Marinho”, nome de um dos poucos líderes republicanos que então havia no Brasil e que, ainda por cima, estava vivo naquela ocasião. Mas, a fim de dar uma nota extra de deboche à sua iniciativa, também incluiu no mesmo projeto a proposição de chamar de “Praça 13 de Maio” o antigo Largo do Rosário…

Cabe dizer que, embora o Brasil naquela época fosse um Império, os republicanos tinham toda a liberdade de se organizar politicamente e de se manifestarem, inclusive na imprensa e na tribuna. Entretanto, pouco tempo depois disso, sabe-se bem o que aconteceu: em 15 de novembro de 1889, um golpe militar derrubou o regime imperial e criou uma ditadura republicana, que colocou todos os partidos e movimentos monárquicos na ilegalidade, da qual eles somente sairiam com a constituição de 1988, a sexta definitiva da nossa estável e impoluta república…

Henrique Vaz tornou-se, em São João, um dos chefes do novo regime, que começou uma instantânea perseguição aos “13 de maio”. A partir de então, proibiram-se as celebrações populares da Lei Áurea, e sufocou-se uma série de manifestações negras em todo o país. E, de todas essas medidas repressoras, talvez a mais emblemática tenha sido a aprovação do novo Código Penal brasileiro em 1890, que criminalizou a prática da capoeira, interdição esta que perduraria até o ano de 1940.

Porém, muito pior do que isso, seria a “lavagem cerebral” que o novo governo faria em consecutivas gerações de brasileiros, os quais praticamente nada conhecem dos verdadeiros meandros da transição Império-república vivida pelo país. Até que essa “revolução cultural” atingiria os próprios negros, cujos militantes, nos dias de hoje, ao menos em boa parte, ironicamente detestam o 13 de maio tanto quanto os escravagistas de outrora… E, no seu lugar, comemoram apenas o 20 de novembro, dia da morte de Zumbi, um líder negro do século 17 que, como praticamente todos os régulos africanos daquela época, também era dono de escravos…

Até achamos que a lembrança de Zumbi, apesar de tudo, é bastante válida, pois celebra uma épica resistência protagonizada por um líder negro. Entretanto, transformar essa história numa espécie de “luta do bem contra o mal”, sem se atentar para a grande complexidade dos personagens e contextos envolvidos em tais acontecimentos, como nos parece que vem se passando, é, ao menos para nós, de um simplismo deplorável…

Por outro lado, nos republicanos tempos atuais, praticamente todos, inclusive os negros, costumam reverenciar, sem muitos questionamentos, o dia de Tiradentes, outro “herói da liberdade” que, como Zumbi, também era senhor de escravos… E, para completar, em 2009, o governo Lula, junto com alguns militantes negros que se consideram representantes de todos os descendentes de africanos no Brasil, resolveu acabar de vez com a expressão “abolição da escravatura”, batizando oficialmente a data de 13 de maio como o “dia nacional de denúncia contra o racismo”… E, para completar, ainda colocaram uma estátua de Zumbi (fantasiosa, como a de Tiradentes, já que ninguém sabe como eram fisicamente esses dois personagens) numa praça em Petrópolis, na mesma avenida onde fica a casa da Princesa Isabel…

Temos, aqui, portanto, um clássico exemplo de como a história costuma ser (re)contada pelos vencedores, no presente caso, pelos ditadores republicanos e seus epígonos. Já quanto ao fato dessa mesma história ser interpretada (e celebrada) pelo outro lado, o dos derrotados, isso fica bem mais difícil de acontecer… Afinal de contas, e como já dizia Breno, o atrevido general gaulês vencedor dos romanos, vae victis, ou ai dos vencidos…


Abaixo, célebre cena em que Breno, o chefe gaulês que derrotou Roma no século 4 a. C., negocia um resgate em ouro com os habitantes daquela cidade, para deixá-los em paz. Os romanos reclamaram que os contrapesos da balança utilizados pelos gauleses estavam viciados, e maiores do que o combinado. Foi quando então Breno acintosamente ajuntou-lhes a sua pesada espada, ao mesmo tempo em que exclamou “vae victis!”, ou “ai dos vencidos!”. Tal frase, desde então, vem recorrentemente sendo utilizada para se referir aos casos em que os vencedores inescrupulosos, a seu bel-prazer, ditam ou modificam as regras, em prejuízo dos vencidos.IM VAE VICTIS

No Brasil, algo semelhante tem se verificado em relação à comemoração da abolição da escravatura, ocorrida com a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, pela Princesa Isabel, representada numa estátua no Rio de Janeiro,embaixo, à esquerda. No ano seguinte ao da abolição, Isabel e seu pai, Pedro II, perderiam o trono graças a um golpe militar, apoiado maciçamente pelos escravocratas de todo o Brasil. Depois disso, o 13 de maio praticamente desapareceu do calendário oficial brasileiro, ao mesmo tempo em que ganhou vulto a comemoração do 21 de abril, dia de Tiradentes (aqui mostrado numa estátua em Ouro Preto, no centro). Por sua vez, o 13 de maio,  após mais de um século de sistemática perseguição e contrapropaganda republicanas no Brasil, seria preterido em favor do 20 de novembro, dia de Zumbi, cuja estátua que aqui aparece (à direita), foi colocada em Petrópolis pelo governo Lula e por supostos representantes da cultura negra, em 2009, próximo à casa da Princesa Isabel. De todas estas três imagens, a da filha e herdeira de Pedro II é a única fidedigna, visto que não existe nenhum retrato contemporâneo de Zumbi nem de Tiradentes. Além disso, a aparência  deste último, que, segundo registros históricos, encontrava-se careca por ocasião do seu enforcamento, contrasta flagrantemente com a imagem “oficial” com que os republicanos passariam a representá-lo a partir de então, com a óbvia intenção de lhe atribuírem uma aura “bíblica”. Por fim, cabe observar que, dos três personagens representados abaixo, a Princesa Isabel era a única que não possuía escravos…

IM VAE VICTIS PERSONAGENS

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