O “DNA teatral” do primitivo carnaval são-joanense

CONTINUAÇÃO DE: https://sjnhistoria.wordpress.com/2017/10/05/os-quatro-periodos-do-carnaval-sao-joanense/

(Texto de Luís Pontes, publicado no jornal Voz de São João em 03/12/2016 – reeditado)

Comentamos, há pouco, neste blog, que os festejos de Momo são-joanenses possivelmente já existiam desde os primórdios desta cidade, na forma do entrudo. E tanto este último aqui já se encontrava presente que, em 1842, surgiria uma lei no nosso código de posturas precisamente para tentar coibi-lo.1

Curiosamente, no entanto, aquele mesmo código municipal, que era tão repressor em relação ao entrudo, liberava a prática do teatro, como se vê em seu artigo 85, o qual dizia: “Todos os que quiserem representar comédias e fazer outros quaisquer divertimentos para seu interesse, (,,,) poderão fazer nas ruas [e] praças da Vila e Povoações, de modo que não perturbem o sossego público e nem ofendam a moral e [os] bons costumes, sendo competentemente licenciados pela Autoridade policial (pela licença de 12 mil réis)”.2

Portanto, a antiguidade do teatro em São João é praticamente tão grande quanto a do carnaval, visto que remonta, pelo menos, a meados do século 19. E um dado curioso é que, naqueles primitivos tempos, a fim de não “ofender a moral e os bons costumes”, as peças teatrais tinham os papéis femininos, mesmo os mais sérios, representados por homens travestidos de mulheres!3 (O que põe um analista contemporâneo, como nós mesmos, a imaginar como, naqueles tempos, uma história clássica envolvendo personagens dramáticas como Eurídice ou Medeia, conseguiria chegar até o final em clima de tragédia, sem no meio, e mesmo sem querer, descambar numa comédia…)

Muito provavelmente, as primeiras companhias teatrais que aqui se apresentaram ao longo do século 19 eram grupos mambembes que, apesar de suas possíveis limitações de recursos materiais, deveriam causar uma enorme sensação na população local, numa época em que praticamente nada havia de diversões ou espetáculos artísticos em nossa cidade. Contudo, também é possível que, com a inauguração da ferrovia em 1880, e o próximo contato com o Rio de Janeiro e outros lugares que passaria a haver a partir de então, São João tenha começado a receber companhias teatrais de maior envergadura, muito embora desconheçamos, ao menos até agora, os locais precisos onde elas costumavam montar seus espetáculos.

Um desses casos aconteceu precisamente em 1904, ano no qual, conforme também há pouco se comentou, encontramos os mais antigos registros dos festejos de Momo são-joanenses. E, de fato, poucos meses após o carnaval daquele ano, aqui chegou a companhia teatral Ismênia dos Santos, que tinha o nome da sua própria líder e criadora. Tratava-se de uma atriz nascida na Bahia em 1840, que desde os tempos do Império se celebrizara nacionalmente por suas memoráveis interpretações, e também por seu engajamento em questões políticas, como numa vez em que, ainda na época da escravatura, declamou poemas abolicionistas diante de uma plateia em delírio num grande teatro do Recife.

Além disso, Ismênia dos Santos também era bastante “antenada” com o que se passava no mundo teatral fora do Brasil. E, nesse sentido, tinha o costume de acompanhar, pelos jornais, a programação dos teatros parisienses, que ela reproduzia nas principais casas de espetáculo do Brasil em primeira mão, geralmente com um grande sucesso de público e de crítica.4

Entretanto, quando aqui esteve, em 1904, Ismênia dos Santos já estava bem mais velha e lutando com dificuldades financeiras. O que não impediu que sua companhia fizesse um grande sucesso em nossa cidade, algo que, por sua vez, deve ter servido de incentivo para que ela e seu grupo aqui retornassem numa nova temporada, no início do ano seguinte. Dessa forma, em 1905, segundo o jornal juiz-forano O Pharol, o grupo de Ismênia, em SJN, apresentou “o drama ‘O Poder do Ouro’. Agradou muito a representação da peça, (…) [sendo que] o entusiasmo de vários espectadores fez com que estes atirassem os seus chapéus ao palco”.

Entretanto, outro fato curioso relatado nessa mesma ocasião pelo referido jornal, pouco antes do início do carnaval de 1905, foi que: “Prometem ser de muita pompa os festejos carnavalescos este ano [em São João Nepomuceno] (…), pois têm à sua frente uma comissão composta dos srs. tenente Sinval Rocha e Ulisses Pereira Mamão, auxiliados pelos srs. Armando Duval e Rafael Gimenez, inteligentes atores da empresa ‘Ismênia dos Santos’, e a esses cavalheiros não faltam habilidade e gosto”.5

Cabe dizer que o ator Armando Duval também era filho de Ismênia dos Santos, e que se casaria com Júlia Santos, uma atriz da mesma companhia. E, de tal união, nasceria, em 1910, outra Ismênia dos Santos, que se tornaria uma popular cantora e atriz de rádio no Brasil a partir da década de 1930.6

Por outro lado, quatro anos depois disso, ou seja, em 1909, seria inaugurado em São João o Cine-Teatro Manzo, um dos primeiros do Brasil,7 num prédio onde hoje fica o Centro Cultural Gabriel Procópio Loures. A casa de espetáculos dos Manzo, por sua vez, também desempenharia um papel de grande relevo no desenvolvimento do primitivo carnaval são-joanense. E, junto com ela, alguns membros da própria família Manzo se engajariam também nessas celebrações. Por exemplo, Maria (ou “Mariquinhas”), uma das filhas de Miguel Manzo, proprietário daquela pioneira casa de espetáculos, se transformaria numa grande “estrela” dos futuros préstitos do Clube Democráticos de São João. E, algum tempo antes dos Democráticos (e também dos Trombeteiros) surgirem em nossa cidade, Pedro Manzo, outro filho do velho Miguel (e também futuro partidário do “Clube do Galo”), seria um importante membro dos lendários “Filhos do Inferno”, a mais antiga agremiação carnavalesca de São João Nepomuceno de que se tem notícia, conforme se verá na sequência deste texto.


BLOG RUA GOVERNADOR VALADARES COM CINENA ANTIGOAcima, vê-se uma parte da rua então chamada de Visconde do Rio Branco, mas cujo trecho aqui mostrado seria posteriormente rebatizado como rua Governador Valadares, numa fotografia de Roberto Capri de 1916. À direita, observa-se o prédio do antigo Cine-Teatro Manzo, inaugurado em 1909 e, à esquerda, um sobrado de dois andares que ainda hoje se encontra de pé. O primitivo prédio do Cine-Teatro seria demolido em 1918, para dar lugar a uma nova edificação, que seria concluída em 1920, e cuja imagem aparece abaixo, num quadro de Dona Bernardete de Oliveira Magalhães. Tal prédio, hoje modificado, abriga o atual Centro Cultural são-joanense.

BLOG CINE TEATRO AGUIA

O Cine-Teatro pertenceu ao empresário italiano radicado em São João Nepomuceno, Michele (Miguel) Manzo, cujo sobrenome foi utilizado para batizar a sua casa de espetáculos. E, tanto em sua versão primitiva como também na posterior, o Cine-Teatro Manzo seria o local de realização dos primeiros bailes carnavalescos em recinto coberto de São João, antes mesmo da construção das sedes sociais dos Democráticos e dos Trombeteiros. Nesse sentido, um dado curioso (e nada gratuito), é que, na sua reinauguração de 1920, ele ostentaria uma águia de asas abertas no topo de sua fachada principal, à semelhança do que depois aconteceria com o Novo Clube Trombeteiros de Momo em sua sede na atual Praça Cel. José Brás, inaugurada em 1925.

Abaixo, vê-se Miguel Manzo com a sua respectiva família. Em pé, da esquerda para a direita, estão os filhos de Miguel: (1) Pedro, um dos foliões que colocaram na rua os “Filhos do Inferno” em 1912, e que, com a dissolução destes últimos, passaria a ser um membro do Clube Democráticos; (2) Antônio, (3) José, (4) Arcanjo, (5) Brás e (6) Vicente. Sentados, e no mesmo sentido: (1) Rafaela, (2) Hercília, (3) Maria Miguelina, (4) a matriarca Rosa Labriola, (5) o patriarca Miguel Manzo, (6) Maria (Mariquinhas) que seria um dos principais destaques dos desfiles dos Democráticos na década de 1910, a primeira de existência do “Clube do Galo”, e (7) Alcides Galileu, numa foto disponibilizada na Internet por Ricardo Manzo.

MANZO FAMILIA

A presença dos Manzo no primitivo carnaval são-joanense chama a atenção para o fato de que, no seu início, os festejos de Momo em nossa cidade estavam estreitamente vinculados ao teatro. E outra prova disso é o fato de que o carnaval são-joanense de 1905 (anterior até mesmo à inauguração do Cine-Teatro Manzo em 1909) foi promovido pela companhia dramática da grande atriz Ismênia dos Santos (abaixo), contando com a participação direta de seu respectivo filho, o ator Armando Duval, o qual, por sua vez, seria o pai de outra Ismênia dos Santos (última imagem), uma atriz e cantora dos primórdios do rádio brasileiro.

ISMENIA DOS SANTOS

ISMENIA DOS SANTOS NETA


NOTAS BIBLIOGRÁFICAS:

1) PONTES, L. E o carnaval (junto com a luz) se fez em São João Nepomuceno. Voz de São João, São João Nepomuceno, 26 nov. 2016.

2) CASTRO, C. F. Os Sertões do Leste: achegas para a história da Zona da Mata. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 2001.

3) BURMEISTER, H. Viagem ao Brasil através das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais.

4) MITOS do teatro brasileiro. Grandes artistas que o Brasil já esqueceu: Disponível no URL: <Ismênia dos Santos. http://mitosdoteatrobrasileiro.blogspot.com.br/2012/11/grandes-atrizes-que-o-brasil.html>. (Acesso em 16 fev. 2007).

5) MUNICÍPIOS: S. João Nepomuceno, O Pharol, Juiz de Fora, p. 2, 1 mar. 1905.

6) CIFRANTIVA. Ismênia dos Santos. Disponível no URL: http://cifrantiga2.blogspot.com.br/2013/05/ismenia-dos-santos.html. (Acesso em 16 fev. 2007).

7) CINEMA-THEATRO: Voz de São João, São João Nepomuceno, 15 nov. 1925.

CONTINUA EM: https://sjnhistoria.wordpress.com/2017/10/19/os-arlequins-ou-filhos-do-inferno-e-o-seu-clube-carnavalesco-e-dramatico-em-sao-joao-nepomuceno/

Deixe um comentário