O dia em que Tiradentes passou por Roça Grande

(Texto de Luís Pontes, publicado no jornal Voz de São João em 20/12/2014 – reeditado)

Joaquim José da Silva Xavier, o Mártir da Inconfidência, era filho de um casal de imigrantes portugueses chegados a Minas Gerais na primeira metade do século 18. Nasceu em 1746 numa fazenda pertencente à antiga Vila de São José do Rio das Mortes, cidade hoje rebatizada como Tiradentes em sua homenagem. Joaquim José também tinha vários irmãos e irmãs, uma das quais, segundo comentaremos em outra oportunidade neste blog, supostamente foi a avó do Padre Germano Gonçalves de Carvalho, que se tornou pároco de São João Nepomuceno em meados da década de 1840.

Já o Padre Germano se envolveu com a Revolução Mineira de 1842 junto com alguns de seus conhecidos, membros da família Dutra. E esta, por sua vez, tinha como patriarca Antônio Dutra Nicácio, um dos fundadores de nossa cidade, e que foi amigo e testamenteiro do Padre Antônio da Silva Santos, outro irmão do Tiradentes.

Portanto, de certa forma, há muita proximidade entre a família do Mártir da Inconfidência e alguns dos pioneiros de São João Nepomuceno. Mas, além disso, o que muita gente talvez desconheça é uma associação entre nossa cidade e o próprio Tiradentes, ocorrida numa época bastante remota da história de São João, visto que esta, na verdade, sequer ainda existia! Expliquemos isto, discorrendo ainda um pouco mais sobre esse histórico personagem.

Joaquim José perdeu os pais quando ainda era criança. Por isso, foi criado por um tio e padrinho que era cirurgião-dentista, e que lhe ensinou essa mesma profissão, de onde veio seu apelido. De espírito curioso e inquiridor, Tiradentes também estudou farmacologia, além de ter se dedicado durante anos à prática e à ciência da mineração. Em 1780, alistou-se nas tropas da Capitania de Minas Gerais, onde chegou ao posto de alferes, uma espécie de segundo tenente nos dias atuais.

Enquanto isso, em 1783, chega a Vila Rica Luís da Cunha Meneses, um polêmico e autoritário governador português, que foi muito criticado por parte da sociedade mineira daquela época. Tanto que virou o personagem “Fanfarrão Minésio”, nas Cartas Chilenas, célebre coleção de sátiras políticas escritas pelo poeta Tomás Antônio Gonzaga, um dos envolvidos na Inconfidência. Sem entrar no mérito de julgar o lado bom ou mau do novo governador, o que também se sabe dele é que tentou estimular a exploração e o controle estatal dos Sertões Proibidos do Leste, nome pela qual se conhecia a atual Zona da Mata mineira. Esta era então habitada quase que somente por índios, embora também já lá houvesse, naquela ocasião, um incipiente trabalho de colonização e catequização, iniciado em Rio Pomba em 1767 pelo Padre Manuel de Jesus Maria.

Dessa forma, no ano de 1784, o governador decide promover uma expedição militar para explorar aquela região ainda quase desconhecida. Provavelmente, havia, nesta missão, vários objetivos. Um deles era fazer um levantamento geográfico daquelas matas, registrando as distâncias, a topologia, os cursos d´água, as características da fauna e da flora, a presença de minerais, etc. Já outro propósito da expedição se revestia de um caráter policial. Sabia-se que os inóspitos Sertões do Leste eram o refúgio de muitos contrabandistas e outros criminosos. E havia notícias da existência de um garimpo clandestino situado nas proximidades do rio Paraíba, chamado Descoberto do Macucu, próximo à atual cidade fluminense de Cantagalo, e que supostamente estava extraindo grandes quantidades de ouro, porém sem pagar um tostão de impostos ao governo português. Dizia-se que o Macucu era uma verdadeira vila, contando com centenas de habitantes, entre escravos e pessoas livres, e até um padre!, sob a liderança de um garimpeiro chamado Manuel Henriques (que nada tinha a ver com um homônimo que ajudou a fundar São João Nepomuceno), conhecido pela alcunha de Mão de Luva.

Cunha Meneses então despacha a expedição sob o comando de um oficial português, chamado Pedro Afonso Galvão de São Martinho. Para compor o grupo, o governador também recomenda que dele faça parte o Tiradentes. Isto é o que ele expressamente escreve numa carta endereçada a outro oficial que também participaria da diligência, onde se lê: “[o] Sargento-Mor (…) São Martinho (…) também leva para o acompanhar o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, que se acha destacado na ronda do mato, visto Vossa Mercê também me dizer que ele tem inteligência mineralógica”. Coincidentemente, essa carta, de 1784, era datada de 21 de abril, precisamente o dia e mês em que Tiradentes seria enforcado oito anos mais tarde!

A expedição parte de Vila Rica e praticamente repete o mesmo percurso que, 17 anos antes, o pioneiro Padre Manuel de Jesus Maria já fizera, ao avançar até as remotas margens do Rio Pomba, para lá fundar a cidade deste mesmo nome. No início de maio de 1784, os militares chegam à Vila de São Manuel, então dirigida pelo Anchieta Mineiro. Esperam um pouco que acabem as chuvas e, ainda neste mesmo mês, passam para a margem direita do Pomba e adentram os “sertões proibidos”, em direção ao grande rio Paraíba, na distante divisa com o Rio de Janeiro.

O trajeto que eles fizeram é muito bem conhecido através das cartas que o próprio São Martinho regularmente remetia ao Governador Cunha Meneses. Dessa forma, sabe-se, por exemplo, que, ao atingir seu destino final, na margem esquerda do Paraíba, a expedição construiu um embarcadouro, que foi batizado de Porto do Cunha, em homenagem àquele governador. Mas, pouco antes de chegar ao caudaloso rio, e ainda em território mineiro, ela havia percorrido as paragens da “Terra Corrida”, hoje pertencentes à cidade de Santo Antônio do Aventureiro, depois de ter atravessado o “rio Pardo”, que corta o atual município de Argirita. E, antes de chegar a esse último rio, sempre vindo de noroeste, a expedição recém-saída do Pomba passara por… “Roça Grande”, localizada no atual município de São João Nepomuceno, que então nem por sombras ainda existia! No entanto, esse estranho fato talvez possa ser explicado, e é isso o que tentaremos fazer na sequência deste texto.


BLOG TIRADENTES E A SERRA DO RELOGIO

Os retratos que postumamente se fizeram de Tiradentes são todos fantasiosos, visto que nenhum artista dele contemporâneo chegou a representá-lo em vida. Um desses quadros fictícios (acima), pintado pela artista Fânia Ramos Araújo no ano 2000, encontra-se atualmente no Museu da Fundação Chico Boticário, em Rio Novo, e representa Joaquim José da Silva Xavier em trajes do Regimento dos Dragões. Com o nome “Tiradentes em missão nos Sertões Proibidos”, essa imagem mostra, na sua parte superior direita, o contorno da Serra do Relógio, nas proximidades das atuais cidades de Descoberto e São João Nepomuceno. Com isso, ela alude à viagem que o Tiradentes fez à região próxima a essas atuais cidades no ano de 1784. O quadro de Fânia Araújo, por sua vez, é fortemente inspirado num anterior, de autoria de José Walsh Rodrigues, datado de 1940, em que se percebe, no fundo, à direita, a saliência do Pico do Itacolomi, um dos símbolos de Vila Rica, atual Ouro Preto.

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