Gastão de Orléans em duas versões, anedótica e grandiosa, segundo outro Gastão, o Penalva

CONTINUAÇÃO DE: O último encontro do dr. Francisco Barroso com o Conde d’Eu

(Texto de Luís Pontes, publicado no jornal Voz de São João em 04/03/2023 – reeditado)

Estávamos comentando, nesta coluna, sobre uma história contada num longo artigo publicado no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro em 1935, pelo são-joanense Francisco Firmo Barroso, sobre a sua proximidade e o apoio financeiro fornecido pelo Conde d’Eu, para que ele se formasse em medicina em 1890.

E, na introdução de seu texto, o dr. Barroso ainda escreveu: “A leitura do artigo, em primeira coluna, do “Jornal do Brasil”, edição de 2 de Maio do ano corrente [1935], subscrito por Gastão Penalva, bem como do livro de Alberto Rangel (Gastão de Orléans – o último Conde d’Eu (…)), até o seu passamento a bordo do [navio]“Massília” [em 1922], que o conduzia à nossa pátria, vieram provocar a história das minhas relações com o genro do Imperador, cujo fito é unicamente, reiterando a minha eterna gratidão ao neto de Luiz Felipe [o último Rei dos Franceses], concorrer com pequena contribuição, para que as gerações novas fiquem esclarecidas das injustiças com que os seus contemporâneos tão malsinadamente, tão cruelmente, tão erroneamente o julgaram, sob a malevolência criminosa da imprensa”.

A seguir, o dr. Barroso se refere ao autor do referido artigo do Jornal do Brasil, Gastão Penalva, como um “brilhante articulista”. Tudo isso nos atiçou a curiosidade de ler o mencionado texto, que motivara o dr. Barroso, por sua vez, a escrever o seu próprio testemunho. Uma busca relativamente fácil na Internet, já que tínhamos todas as referências dadas por Barroso, fez-nos chegar ao que queríamos, e constatar que o médico são-joanense estava mesmo certo, acerca da sua impressão sobre Gastão Penalva, como se pode ver pelo seu respectivo texto, que termina do seguinte modo:

Acerca do Conde d’Eu, mantenho na retina duas impressões interessantes. Uma grandiosa, outra anedótica.

A anedótica:

Certo oficial da nossa Armada, de família de titulares baianos muito achegada ao Paço, vai um dia a Paris e, antes de tudo, dever de cortesia, dirige-se a Boulogne-sur-Seine em visita aos condes d’Eu. Ainda na ‘gare’, porém, encontra um colega, já instalado na cidade, e roga-lhe:

– Olha, meu amigo, manda a minha mala para o seu hotel, que vou fazer uma visita de cerimônia, e depois lá estarei. Onde te hospedas? 

– Na rua de Helder n.4.

Convém elucidar que o tal hotel da rua de Helder n. 4 era a mais debochada espelunca que nesse tempo havia na capital da França. Uma orgia incessante. Quem para lá se aventurasse, tinha a certeza de divertir-se enormemente, tais eram os convivas que costumavam frequentar a casa. Conhecidíssima dos nossos oficiais da marinha.

O recém-vindo encaminhou-se para o castelo dos condes. Não os avistando, teve o cuidado de deixar o seu cartão, com o endereço escrito a lápis, – rua de Helder n.4.

Dias depois, à tarde, no famigerado hotel, o baile ‘bat son plein’ [vai a pleno vapor]. Trajes menores, pela força do estio, que escaldava. Homens e mulheres dançavam desabaladamente, sem o menor respeito ao sexo. O nosso herói, que não conhecia Paris, embriagava-se naquele ambiente delirante, naquela vasta e estrepitosa farra. Súbito, estaca embaixo um carro. Alguém mete a cabeça na janela e berra para dentro:

– Meu Deus! O Conde d’Eu. Atento, delicadíssimo, Sua Alteza ia pagar a visita.

Por sorte, o porteiro do edifício, que sabia a espécie de gente que conservava à sua vigilância, tem a feliz ideia de avisar ao príncipe que “Monsieur le Commandant – n’est pas là” [O Sr. Comandante não está]. Então, com um ar de enfado na sua bela cabeça de guerreiro, Gastão de Orléans retira-se e o baile recrudesce com desvairada intensidade.

A grandiosa.

Em 1922, quando aqui esteve para as festas do Centenário [da Independência do Brasil], o esposo de Isabel teve ensejo de enfrentar-se com alguns dos seus antigos camaradas, que fizeram questão de o saudar. Com eles, entretinha-se, rememorando cenas do Paraguai, chamando um por um pelos seus nomes, com sua prodigiosa memória, citando fatos que eles mesmos haviam esquecido, referindo-se sempre com desmedido orgulho ao combate de Peribebuí, uma das mais formosas páginas de sangue da encarniçada campanha.

Foi num dia de parada militar.

Todas as tropas formaram para a revista, que seria passada pelo príncipe. No espaço, o estrondo marcial das fanfarras e das bandas de tambores e clarins. Uniformes, espadas e baionetas refulgiam ao sol do meio-dia. O Conde d’Eu, em meio a seu estado-maior, mostrava o vulto de lidador que os anos já faziam curvar para a terra. Estava trêmulo, comovidíssimo, mas completamente feliz. Vinha rever o Brasil, o povo pelo qual se batera com o mesmo ardor patriótico com que na sua mocidade defendera o seu amado tricolor [francês], nas lutas marroquinas. O regime era outro, o mesmo que lhe banira a família. Mas, apagados os rancores, era a República que homenageava o grande remanescente da extinta Monarquia.

De repente, o General Estelita Werner, que comandava a parada, após o toque de sentido, solta a voz retumbante:

“Em continência ao Sr. Marechal Conde d’Eu, apresentar armas!

Houve um imenso frenesi nas tropas. A armada ostentava-se, ao lado das forças de terra, com os seus marujos e fuzileiros. Um ‘frisson’ de delírio percorreu a multidão extasiada. As baionetas perfilaram-se, rivalizando com os olhos dos soldados em rápidas cintilações de entusiasmo. E viu-se o Conde d’Eu sair todo de si mesmo, erguer-se o mais possível sua elevada estatura, crescer sobre todas as cabeças, agitando no ar o seu chapéu desabado, a cabeleira branca desgrenhada pelo vento da barra e agradecer ao Exército chorando.

Naquele instante, era bem o guerreiro de outrora diante das suas armas vitoriosas. Peribebuí, Tuiuti, Passo da Pátria, Campo Grande, ainda pairavam como pálios constelados por sobre as frontes das legiões contemporâneas.

Isto que para mim constitui a estética dos indivíduos, gestos e atitudes que deveriam servir para a idealização consagratória dos monumentos cívicos, colheram os meus olhos deslumbrados, olhos de nauta desde cedo afeitos aos luminosos panoramas da vida. No seu livro, o paisagista de Sombras n’água estampa uma fotografia edificante. É Gastão d’Orléans, em 1914, já bastante idoso, mas ereto, vestido como simples soldado, de carabina em punho, fazendo a ronda de Paris. Tem o ar submisso e disciplinado de quem cumpre o seu último dever. Sulcam-lhe as faces decaídas as lágrimas que vertera por esse adorado Luiz [seu 2º filho, que morreria em 1920 em decorrência de sequelas da guerra], o Príncipe Perfeito, que lá estava nas linhas de batalha, seguindo as glórias paternas. Era um cruel pressentimento de morte.

E uma dedicatória impressionante: “A D. Pedro de Orléans e Bragança, filho [primogênito] do Conde d’Eu, e descendente direto dos soberanos que sustentaram o Brasil organizado, coeso e de bom crédito”

Ó sombras venerandas do passado! Velai paternalmente a nau da nossa pátria, na sua singradura tormentosa e difícil.”


O Conde d’Eu, já septuagenário, patrulhando voluntariamente as ruas francesas na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com seu neto Pedro Gastão.

CONTINUA EM: A trágica morte do dr. Francisco Barroso, e os derradeiros testemunhos de uma era

Um comentário

  1. Profética dedicatória! Que belo texto! Demonstra bem como nossa imprensa contaminada já de há muito tempo difamou homens públicos de alta honorabilidade, o que acabou por moldar sua imagem na história contada em nossas escolas. E como são lenientes com figuras que merecem ser deploradas!

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